Alcides Buss na Confraria da Arte

Elegia Pataxó

Não foi o dia, desta vez,
que nasceu no grito inocente
dos pássaros, nem na sirene,
tampouco, dos grilos silvestres.


Não foi de festa, igualmente,
a explosão de súbita chama,
veloz, perfurando as retinas
e voraz entrando no tórax.


Não eram as gralhas, nhambus
ou araras que de repente
chegavam, pondo-se em pânico
e se atirando contra as trevas.


As íngremes nuvens de inverno,
pesadas, vãs, mal entendiam
o trêmulo apelo dos lábios
em torno do tempo distante.


Ruídos, ruídos, ruídos
depressa se acercam da língua
e, num instante, já não deixam
lugar pra soltar, desfazer
o nó que entope a garganta.


Estrelas, tão tímidas sempre,
agora se inflam, atritam-se
e expelem odor de veneno,
como se urrassem as feras
ante a iminência da morte.


Que flechas se quebram na pele,
as pernas perdidas do corpo,
as mãos segurando ainda
um recado não dado e a força
que foge de dentro dos olhos?


Imagine:
há quinhentos anos o vento
soprando e inflando este fogo
contrário, o sol às avessas,
e a bruma deitando no verde
das folhas as cinzas miúdas!

Hammletiano

A vida comprovadamente
continua. Basta olhar na janela
as árvores que se debruçam
sobre o rio. Ou ouvir
o ronco dos carros. Ou ainda
morder a própria língua.
Não sei por que, porém,
tudo o que aí comprovadamente
está, parece às vezes ser
apenas uma lembrança triste.

Luxo

Um dia de chuva
guarnece a memória.
Por onde se vai
no exíguo poder
permeia-se o lucro
do vir-a-ser. Alguém
que tudo soubesse
diria: mais vale
deixar-se assim, mesmo
que sem glória,
do que romper
o simulacro da vida.
Às voltas com excessos
passados, concedo-me
ao luxo de sorrir.

Sem fronteiras

Então abdico do nome.
De frente a frente com o corpo,
restauro o que era antes de ser,
o úmido gesto do nada,
o jejum anteposto.
Bem perto do arbítrio,
renego a satânica ausência.
Moderno, me cifro no azul.
Um ou nenhum, a brisa futura
me envolve de amor
virtual e enfático!

Devir

Ah, essa sombra que adere
às palavras, este falso ruído
de cisnes, este anseio indiviso!
Sou ainda o mesmo de ontem,
devoto feitor de vazios e absurdos?
Escapam de mim, agora,
as garras do tigre, os gumes
alheios à forma, o Nada?
Ah, esse rio de restos de coisas
que corre no avesso de mim!
Ainda?! Ainda?! Ainda?!
As fálicas frestas noturnas
são estes díspares passos
confusos? Conforma-se a alma
à lama dos sons prematuros?
Ah, esse mesmo pendor no viés
das vísceras, arrastando-
se, esta águia em pedaços!
É este o dever? É isto poesia?

De ler e andar

Há dias em que há
mais sentido nas ruas
do que nos livros.
Nesses dias se deve
de casa sair
e, dentro de si,
caminhar à escuta
da vida.
Há dias,
porém, em que mais
sentido há nos livros.
É preciso, então,
trancar-se em leituras
e, numa entrega de sonho,
misturar-se ao mundo.

Morri pra nascer.

Morri pra nascer.
Em cada pedaço do corpo
cravei os signos da paz.
Desfiz a última ceia
no íntimo ardor do pecado.
Compus com as sombras
o quadro da morte.
Deixei que tudo sobrasse
no lado de fora.
Importava era estar
em mim mesmo absolutamente
intocável. E de mais a mais
só queria o descanso
que merece um mortal
cumpridor dos deveres.